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quarta-feira, julho 19, 2006

Musicologia e História

HISTÓRIA UNIVERSAL DA MÚSICA


Musicologia e História

De todas as ciências da música, a história é uma das mais férteis em temas de reflexão, pois é uma história da imaginação e do comportamento. Seu domínio engloba uma grande diversidade de conhecimentos (teoria, estética, sociologia, etc.), donde o enriquecimento que proporciona, se não se perseguir a miragem da cultura individual enciclopédica. Pois toda ciência bem compreendida faz progredir primeiro a cultura coletiva, deixando ao indivíduo, apenas o sentimento do que resta a descobrir.

No entanto, a história da música esbarra nos limites de todo estudo histórico e nas dificuldades que lhe são específicas. Assim, não pode haver história da música objetiva, no sentido familiar do termo, pois o procedimento histórico toma seus conceitos fundamentais (por vezes até mesmo o objeto de suas pesquisas) emprestados da filosofia pessoal do historiador. Mais particularmente, os juízos musicais se referem necessariamente a preferências individuais ou coletivas, na ausência de modelos exteriores.

Esse subjetivismo torna os depoimentos sobre a música particularmente frágeis. Ora, os fenômenos musicais passados não podem ser estudados diretamente, como os monumentos da pintura ou da literatura, e não se prestam, como os acontecimentos políticos ou militares, a relatos exatos e pormenorizados: a música é fugidia e indescritível. As fontes com que o historiador deve então contentar-se são, de um lado, testemunhos suspeitos e sem rigor, de outro, a reprodução aproximada dos fenômenos musicais, graças à notação (quando ela existe).

Outras ciladas a temer: o interesse anedótico das vidas de músicos célebres, nas quais somos tentados a deter-nos longamente; a aparente lógica determinista da evolução das formas; ou a confiança no rigor e na fecundidade das análises. A menos que se consagre um estudo a um compositor em particular, a biografia só é capital se esclarece a obra. Quanto à evolução das formas, a maneira pela qual a fuga sucede à passacaglia, ou a sonata à suíte, é de uma importância histórica bem pequena, se não se reconhece nenhuma razão humana para essa evolução. O desenvolvimento da polifonia não é, em si, mais que uma curiosidade técnica, de sucesso inexplicável, se não procurarmos descobrir suas causas e suas conseqüências. Enfim, a análise, apesar do gosto imoderado que os comentadores têm hoje por ela, em geral nada explica e cria uma confusão entre o aparente e o essencial. Ela revela, na prática ordinária, três grandes fraquezas metodológicas:

1 – A análise negligencia, na maioria das vezes, a busca das formas e das estruturas que são verdadeiramente pertinentes e inteligíveis para a cultua e a sociedade que suscitaram a música estudada. Ora, é isso que importa, antes da descoberta de detalhes insuspeitos.

2 – A música só existe pela audição no tempo. Ora, a análise detém o tempo e introduz a observação visual (notação) e o pensamento dialético. Ela permite ver e compreender como a música é feita, nem sempre ajudando a ouvir como ela funciona.

3 – O analista é sempre tentado a aplicar estruturas aprendidas em conjunto não estruturados na realidade física. As sucessões de acordes mais inabituais, quando não puramente intuitivas ou mesmo aleatórias, podem ser relacionadas, assim, aos esquemas da harmonia acadêmica.


Para completar esse reconhecimento de nossos limites, devemos acrescentar que a sociologia da música é uma disciplina recente e ainda balbuciante. Nosso conhecimento dos públicos permanece insuficiente para determinar com segurança que signos são reconhecidos e compreendidos pelos diferentes públicos na música contemporânea nas diferentes épocas. Isso seria, no entanto, capital. Rigor nos métodos, audácia na pesquisa, seriedade na reflexão: são essas as condições de uma historiografia moderna, que permita comparar as civilizações, compreender a evolução singular da música ocidental e, talvez, prever, por extrapolação, o que será seu futuro e, eventualmente, seu fim...

E a musicologia? O público a vê como uma ciência altamente especializada, distinta das outras ciências musicais. Não raro, os profissionais estimulam essa representação, que talvez achem lisonjeira. Literalmente, a musicologia é a ciência e o estudo da realidade musical no sentido mais geral; ela engloba, normalmente, a história, a estética, a teoria dos sistemas e das escalas, as sociologia, a psicossociologia, etc. A palavra francesa está em uso apenas desde o início do século XX; é a tradução da alemã Musikwissenschaft, empregada pela primeira vez por Chrysander em 1863, na época em que nascia, de fato, a musicologia moderna.

Muitos musicólogos tendem a limitar sua disciplina ao estudo das fontes musicais, à descoberta das músicas esquecidas, enfim à restituição das obras do passado numa forma que permita a sua interpretação adequada. Essa musicologia tradicional negligencia certos aspectos fundamentais:

- o aspecto sociológico: quem produz a música? quem a ouve? por que? em que circunstâncias e em que condições?

- o aspecto semântico: o que o ouvinte percebe, como ele “interpreta” o conjunto dos signos sonoros? como a música é “compreendida” pelo grupo a que é destinada?

- o aspecto psicofisiológico: como se elabora essa percepção? quais são suas condições favoráveis e suas causas de perturbação?

- certos aspectos teóricos: escolha das escalas e dos modos, causas e conseqüências da evolução dos sistemas, implicações filosóficas, métodos modernos de análise apoiado numa descrição completa dos sistemas.


Uma nova musicologia parece dedicar-se hoje a preencher essas lacunas. Quando estiver menos entulhada de semiologia, quando tiver terminado seu crescimento, definido seu métodos e ampliado seu campo de ação, talvez venha a ser o instrumento de um renascimento de nossa cultura musical.


O próximo artigo desta série é EM BUSCA DAS ORIGENS

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