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segunda-feira, julho 10, 2006

Função Social e Percepção

Este é o 2º Artigo da série História Universal da Música. O primeiro é:

01 - Introdução e Miragens de uma Definição


Se é difícil definir a música, também é difícil explicar sua função social e descobrir seu modus operandi. A essas questões está ligada a percepção do “sentido” musical: quanto mais a música for “funcional” (no sentido lato), mais bem compreendida será:

Antiguidade – Em sua origem, a música era apenas uma atividade muscular (membros, laringe) adaptada às condições de luta pela vida. Seu desenvolvimento acompanhou, de diversas maneiras, o das sociedades humanas. Ela permanece por muito tempo um prolongamento, um esteio, uma exaltação da ação. Ligada à magia, à religião, à ética, à terapêutica, à política, ao jogo e ao prazer também, ela constitui um dos aspectos fundamentais das velhas civilizações. Sua transmissão será assegurada, de geração em geração, pela imitação, depois pelo ensino sistemático.

Na Antigüidade (e até os dias de hoje, em certas civilizações), a música constitui a mais alta sabedoria, por ser a chave de todas as outras. “Não há conceito neste mundo que não seja transmitido pelos sons. O som impregna todo o conhecimento. Todo o universo repousa no som” (Vakya padiya). “Tudo o que ouvimos nos traz felicidade ou infelicidade. A música não deveria ser executada inconsideradamente” (Seu Ma-tshien). “Para ser instruído em todas as coisas, é preciso estudar com cuidado a música em seus princípios naturais” (Confúcio). “Qualquer mudança em matéria de música é prenhe de conseqüências para a cidade... Não se pode mudar o que quer que seja no modos da música sem abalar a estabilidade do Estado” (Platão)... Os pitagóricos vêem na música uma representação da harmonia universal. Não só seu conhecimento é indispensável a todos os que querem elevar-se no caminho da sabedoria e da ciência, como também é necessário ao povo e aos escravos, porque eleva a alma e nela mantém sentimentos nobres e justos, garantindo assim a estabilidade e a prosperidade do Estado.

Nem todos os contemporâneos de Terpandro, Píndaro ou Damon, ou os de Confúcio, foram, é claro, igualmente músicos, igualmente receptivos e inteligentes em relação ao fenômeno musical. Mas, sem dúvida, nunca foi tão profundo quanto hoje o abismo entre o hipermúsico (Profissional ou não), a “hiperacústica” e, por outro lado, o analfabeto ou o idiota musical, “anacústico” ou “amúsico”! No século IV a.C., por não ter a sabedoria acusmática resistido à retórica dos geômetras e dos sofistas, a música grega degenera e o gosto público se degrada a tal ponto, que logo os descendentes dos ouvintes de Sófocles se deliciarão com os combates de gladiadores e se exaltarão com a barulheira solene dos hinos totalitários.


Depreciação do Auditivo – A partir de então, o primado do visual vai substituir o do auditivo na civilização ocidental: música perde sua situação privilegiada na cultura e na vida cotidiana. Resulta disso, com o decorrer dos séculos, uma diminuição progressiva da sensibilidade aos fenômenos sonoros, em particular à música: os povos do Ocidente tornam-se “anacústicos”, se me permitem esse neologismo, com exceção de uma pequena proporção de iniciados. O próprio ensino confia cada vez mais na vista da criança (livros ilustrados, objetos exemplares, desenhos, quadros, gestos, demonstrativos) e cada vez menos em seu ouvido (declínio do ensino oral).

Na sociedade industrial, a depreciação do auditivo tornou-se ainda mais aguda. O motivo pode ser o seguinte: o olho é atento, laborioso, preciso, escolhe e controla o objeto de sua função; o ouvido não se abre nem se fecha à nossa vontade, recebe misturados todos os objetos sonoros que estão a seu alcance, escolhe com dificuldade, é pouco atento, não é naturalmente laborioso. Comparado com o olho, o ouvido parece indolente e sofre o tabu que nossa sociedade impõe a qualquer forma de preguiça! Nessas condições, a música é suspeita, a tal ponto que a profissão de músico parece singular, quase indigna, a uma certa burguesia. Além disso, a música é fugidia: presta-se mal à observação, à análise, que o mundo moderno não pode dispensar. É uma arte do tempo, desse tempo hostil de que a vida depende (“O tempo é sempre o lugar do suplício”, escreve Domenach). A dificuldade de abordá-la de maneira objetiva, científica, é ilustrada por um jogo de salão proposto por Roland Barthes: falar de uma música sem empregar adjetivos!

Pareceria natural pelo menos que a elite intelectual sempre se preocupasse em conservar para a música um lugar honroso em sua cultura e seus trabalhos. Ora, para tomarmos apenas um exemplo particularmente significativo, foi como que reprimida em Freud pelos tabus sociais. De fato, como é possível que um intelectual vienense do final do século XIX tenha sido amúsico, como ele dá a entender? Quando define as fantasias, ou quando explica como as obsessões melódicas são sempre portadoras de um sentido extramusical que se relaciona ao inconsciente do sujeito, ele parece negar a existência de um sentido musical puro (há melodias obsedantes para todo o mundo e outras que nunca o serão). Para ele, como para vários outros pensadores, a visão é privilegiada: é o instrumento da descoberta científica, da observação.

A agravação contínua dessa tendência “anacústica” pode explicar a situação servil habitualmente imposta aos músicos durante vários séculos. Muitos foram considerados criados, alguns vagabundos. Julgados inaptos para governar sua vida como cidadãos conscientes, são freqüentemente objeto de solicitudes arrogantes e por pouco não se lhes oferece ajuda para atravessar a rua. Pondo-se a serviço de famílias poderosas, ou sob sua proteção, muitos grandes músicos viram-se dependendo inteiramente de uma elite social não raro incapaz, desde o século XVII, de justificar suas pretensões a certo nível cultural. A humildade inconveniente de numerosas dedicatórias soa ainda mais falsa porque os destinatários, cujas boas graças o músico precisa conquistar a qualquer preço, acumularam enganos e injustiças.

Para mostrar que escapavam dessa subordinação, grandes músicos orgulharam-se de se proclamar “diletantes”, isto é, independentes. Satisfeitos por não terem de ostentar, à frente de suas obras impressas, os sinais de qualquer servidão, intitularam-se altivamente: dilettante veneto (Albinoni), ou nobile veneto dilettante di contrapunto (Marcello). Caberá a Beethoven restituir a todos os músicos o sentimento de sua dignidade. Mas a atividade marginal dos músicos hoje mal encontra uma justificação que não seja em termos econômicos, a tal ponto sua função social é incerta.


Músico Funcional – Entretanto, em todas as civilizações o desenvolvimento da música esteve ligado à sua função na sociedade. Essa função foi um dos principais fatores da evolução da música ocidental, quase sempre suscitada, até o século XVIII, por circunstâncias de vida pública e privada. Toda a música de Lully, Purcell, Scarlatti, Couperin, Vivaldi, Bach, Rameau ainda é “funcional”, e até mesmo boa parte da de Haydn e Mozart... Essas relações de funções explicam por que tantas obras-primas, hoje difundidas no mundo inteiro, não foram publicadas em seu tempo: aquela música “de circunstância” não era destinada à posteridade!

A partir do século XIX, o mito do compositor romântico e a nova concepção da arte pela arte criam um preconceito em favor de uma música “pura”, toda música de circunstância ou funcional sendo artisticamente depreciada, mas praticada de forma subsidiária por motivos econômicos.

Ao mesmo tempo que se desviava pouco a pouco de suas funções sociais originais, a música ocidental, que se tornara polifônica, crescia em complexidade. No início dessa dupla evolução, o aparecimento do conceito de obra musical é uma singularidade cuja ação evolutiva foi determinante. A obra é o conjunto das características permanentes de uma ação musical renovada; ela estimula uma preparação minuciosa, refinada, da ação futura, que se refere à lembrança da ação passada. A música vê-se geralmente enriquecida com isso e sua complexidade estrutural tende a aumentar.


Especialização: O Público – Acentua-se, assim, um fenômeno de grande importância sociológica: a especialização. Primeiro, músicos passivos (ouvintes) tendem a distinguir-se dos músicos ativos; depois, à medida que a obra se afirma como fundamento de nossa tradição musical, os dois grupos se dividem, por sua vez, em subcategorias cada vez mais diversificadas: compositores, editores, intérpretes, ouvintes, de diferentes tipos, como veremos adiante.

Assim que a especialização se impõe, a música passa a depender da presença de um “público”, de seu comportamento, das pressões que ele exerce e, portanto, das contingências psicossociológicas, históricas, políticas. Se os grandes artistas vinham a Esparta, antes da hegemonia ateniense, no século VII, já era porque lá encontravam um público. Conforme se dirija ao povo, à corte, à burguesia pré-industrial, aos jovens ou a diversas categorias de cibernantropos da era industrial, a música evoluirá de uma maneira determinada. Em compensação, é raríssimo que presida à sua evolução uma teoria puramente hedonista, uma teoria das reuniões de sons “agradáveis ao ouvido” ou que, mais exatamente, estimulem o parassimpático, provocando as reações vegetativas ligadas ao prazer. Mais ainda que as dificuldades práticas, os preconceitos éticos se opõem a tal teoria, pois o prazer é suspeito na civilização cristã: associar-lhe a música seria depreciá-la ainda mais.

De qualquer modo, o verdadeiro artista não procura agradar imediatamente, salvo quando sua sobrevivência disso depende. Fundamentalmente subversivo, ele mantém sua liberdade de impor mudanças apesar do público, obedecendo a necessidades históricas, técnicas, estéticas. O artista é integrado à sociedade com sua liberdade e, se é incompreendido, é porque é profético: o conflito entre a arte e a sociedade é uma realidade objetiva que decorre da essência de uma e outra.

É na Grécia que descobrimos as primeiras manifestações de um “público” socialmente consciente, cujo juízo podia ser determinante, quando dos grandes espetáculos-concursos de Delfos e Atenas. Até mesmo Ésquilo, Eurípides e Sófocles disputavam regularmente os sufrágios do povo ateniense. A partir da conquista romana e, sobretudo, do advento do cristianismo, a música não é mais destinada ao povo, senão para sua edificação ou para sua salvação. A música “erudita” será, durante séculos, apanágio da Igreja e dos poderes. Será preciso aguardar o aparecimento, nos séculos XVII e XVIII, dos teatros de ópera e dos concertos públicos, ambos pagos, para que volte a manifestar-se aquela multidão de ouvintes que compra, com seus ingressos, o direito de ficar satisfeita ou insatisfeita.

Esse “grande público” distinguiu-se com freqüência, nos últimos três séculos, por seu conservadorismo estético: por vezes se queixa das mudanças que lhe tornam a música “incompreensível”, e sua preocupação em compreender (tão estranha diante de uma arte não significante) torna-se obsessiva. Mas não se deve ser sistemático: o artista profético à frente de seu tempo é um lugar-comum da história da música. A defasagem sempre existe, mas, de ordinário, é rapidamente superada: percebidas a princípio como anomalias, as novidades são integradas à tradição, servindo, por sua vez., para controlar novos progressos. A recusa categórica da música moderna por parte de uma maioria do público é uma singularidade de nosso tempo.


Consumidores de Música – Não sendo mais, desde há muito, coletivamente responsáveis por nossa civilização musical, estávamos prontos para receber passivamente a música que uma indústria especializada nos destinasse. Esta apostou no conservadorismo do público, estimulado pelo culto exclusivo da música antiga que os progressos da musicologia suscitam. A música moderna, aquela que vimos nascer, cessa de ser preponderante como sempre foi; julgada hoje segundo critérios do passado, ela se torna cada vez mais suspeita para a grande massa dos ouvintes.

Os criadores independentes tenderão a avançar ainda mais, acentuando sua especialização, seu isolamento, a depreciação da sua arte e condenando ao gueto suas produções mais originais. Segue-se que a maior parte da música “consumida” em nossos dias não é de modo algum representativa do pensamento estético contemporâneo, o que parece incrível se julgarmos com recuo suficiente! Produto de consumo de funções indeterminadas, uma música neutralizada é difundida por toda parte hoje em dia sob uma forma “já digerida”. As pessoas não escolhem mais, submetem-se ao que o show business decidiu vender.

A música dos povos supedesenvolvidos não é mais um acontecimento sonoro privilegiado. Banhando perpetuamente nosso sistema auditivo e nosso inconsciente musical, ela é um aspecto vibratório do meio, benfazejo ou maléfico, e por vezes devemos proteger-nos dela como das intempéries. Saturado de decibéis sintéticos, o homem de hoje não percebe mais a sinfonia dos sons raros ou familiares, os pios dos passarinhos, os rumores da floresta e aqueles incontáveis ruídos carregados de símbolos que se elevam do vale; ele os confunde com o silêncio, só sabendo ouvir o bater solitário de seu coração quando cessa a música ambiental. O duplo fenômeno da complexidade das músicas avançadas e da poluição do ambiente sonoro faz dele um anacústico, um amúsico, fisiológica e psicologicamente. Para se integrar de novo nas correntes de civilização musical, deverá reaprender a inocência.



Não deixe de ler o próximo artigo A TRANSMISSÃO DAS IDÉIAS – A OBRA E SUA NOTAÇÃO, a ser postado em breve.