A Transmissão das Idéias: A Obra e sua Notação
Este é o 3° artigo desta série. Os dois primeiros são:
01 - Miragens de uma Definição
02 - Função Social e Percepção
“Um livro é uma árvore morta”
Saint-John Perse
Os testemunhos mais antigos de civilizações musicais refinadas remontam a mais de seis mil anos e temos razão de pensar que as origens da música são mais remotas. Pela iconografia, pelos vestígios de instrumentos, pelos relatos lendários ou pela tradição filosófica, sabemos quais eram suas funções e as condições de seu desenvolvimento desde a mais alta Antiguidade, principalmente na Ásia Menor, no Egito, na China e na Índia.
Contudo, essas ricas civilizações não nos deixaram o menor vestígio de uma obra musical notada, e, na abundância dos documentos, não se encontra qualquer representação de um músico lendo. Esses povos antigos não parecem ter-se preocupado com a transmissão exata de um patrimônio de objetos musicais, de idéias musicais, como tampouco se preocupam hoje os músicos tradicionais da Índia. Eles praticavam a música em circunstâncias determinadas, unicamente em benefício deles mesmos ou de sua família, sua casta, sua cidade, excepcionalmente para a satisfação de algum vencedor, atendo-se ao respeito às escalas e regras tradicionais.
Os mais antigos sistemas de notação que conhecemos são os dos gregos (desde cerca de 600 a.C.); pelo menos, foram os primeiros a nos serem transmitidos de forma inteligível. Os chineses teriam utilizado, desde o segundo milênio antes de nossa era, símbolos representando os sons de sua escala; mas não conhecemos qualquer documento musical notado anterior ao século XVI de nossa era. Quanto aos sistemas da Índia, que sabemos existirem desde a época védica, tinham provavelmente, a princípio, um caráter esotérico, ligado à interpretação dos hinos; só nos são acessíveis sob a forma, relativamente recente, que conservaram em nossos dias, como funções principalmente teóricas e pedagógicas.
É impossível garantir que uma notação da música tenha funcionado ou não em épocas muito remotas, na Mesopotâmia ou no Egito, por exemplo, apesar dos resultados encorajadores de pesquisas recentes. De qualquer modo, nenhum sistema pode ter sido de uso corrente na Antiguidade. Músicos lendo só aparecem na iconografia no início do século XV de nossa era, quando, na civilização ocidental, a notação se tornou prática e indispensável. Não conhecemos tampouco textos musicais, fora as referências do Sāma Veda (c. 1200 a.C.) e de uma dezena de documentos gregos, a maioria bastante tardia. Se o uso da notação tivesse sido mais difundido, é certo que a civilização helênica, cuja poesia lírica, a tragédia, a filosofia são conhecidas graças a abundantes fontes literárias, nos teria deixado inúmeros testemunhos de seu patrimônio musical. Claro, vários de nossos raros documentos representam obras musicais autônomas, no sentido em que compreendemos hoje. Mas são casos isolados, pouco significativos. Os símbolos gráficos aparentemente teriam como objetivo principal, então, guiar a recitação lírica em caso de necessidade e, sobretudo, fornecer um instrumento de trabalho aos teóricos e pedagogos.
Quanto à música cristã primitiva, nem a notação alfabética latina (incoerente adaptação da notação grega), nem a notação bizantina, ambas demasiado ambíguas e complicadas, podiam contribuir para seu desenvolvimento e sua difusão. Praticamente, a música cristã dispensou anotação até o aparecimento dos primeiros neumas¹, por volta do século VIII (pp. 205 s.); a memória dos cantores, seu conhecimento das regras e alguns gestos convencionais bastavam para garantir a coesão dos coros.
Entretanto, os primeiros neumas não eram mais que uma estenografia imprecisa, hoje quase indecifráveis, destinada apenas a ajudar a memória, indicando o movimento de fórmulas melódicas já conhecidas. Até o século XII, a interpretação dos textos musicais permanece bastante incerta, freqüentemente arriscada. O ritmo só será notado com clareza no século XV e será preciso aguardar o século XVIII para que a dinâmica e a instrumentação sejam determinadas com exatidão. É à medida que a polifonia se torna mais complexa e refinada que, por necessidade, a música ocidental se dota lentamente de um sistema de notação cada vez mais preciso.
Assim, a preocupação de conservar e transmitir com exatidão a idéia musical à posteridade parece extremamente recente e em nenhuma outra parte foi tão impositiva quanto em nossa civilização. Desde há milênios, a música era uma arte de tradição oral, como a pantomima. Regras fundamentais, profundamente assimiladas, constituíam o essencial da cultura musical transmissível. Eram elas que os músicos respeitavam, e não o que chamamos de “obras”. A música vivia em perpétuo devir, fosse no improviso, fosse na interpretação renovada de fórmulas tradicionais. Ela era um gesto que se esvaía para suscitar outro e não podia petrificar-se num sistema ilusório de correspondências gráficas. Mesmo quando uma obra literária supunha uma interpretação musical determinada de antemão (lírica e tragédia gregas, por exemplo), era muito mais a um modo de recitação do que a uma composição musical justaposta ao texto que os antigos se referiam.
A Notação Ocidental
Segundo J. Handschin, a notação é o sintoma de um debilitamento de sentido musical. A memória musical, notavelmente fiel onde se impõe a tradição oral, se enfraquece e se degrada sob a influência da notação. Criando uma categoria de músicos executantes, distintos dos criadores, ela acentua uma especialização prejudicial à cultura musical coletiva. Privilegiando a partitura, a ponto de fazer dela o objeto por excelência da música, ela precipita o declínio dessa cultura. É interessante observar que, a partir do século XVI, quando a notação se tornou soberana e a partitura precisa e tirânica, os anjos musicistas desaparecem da iconografia e são substituídos por profissionais lendo. A inspiração angélica foi substituída pela engenhosidade dos “compositores”...
Com efeito, a mutação provocada pela escrita na música ocidental foi profundíssima. Incapaz de estabelecer a posteriori as sutis flutuações agógicas do ato musical (o que, inicialmente, tinha por vocação fazer), ela inaugura a maneira de estabelecer a priori a maneira como os sons devem ser produzidos. Ela se torna um cânon fixo, cuja observação favorece o culto desmedido da obra. A importância que damos a esse conceito, enquanto representação de pretensos objetos musicais, é excessiva. As “obras” escritas, cujo estudo é a preocupação maior dos historiadores e musicólogos, não são objetos acabados, mas por fazer. A esse respeito, a partitura é comparável à planta do arquiteto, à decupagem do filme ou à receita culinária. O elemento permanente, reconhecível, transcendente às interpretações possíveis não é a obra, mas seu projeto. A representação que um músico faz para si ao ler a partitura sem tocá-la refere-se necessariamente a uma interpretação imaginária; a lembrança que dela conserva é a de uma música ouvida e não a de um conjunto de símbolos que representam uma música a ser tocada. Só existindo se aparecer na interpretação, a obra é uma “aparência”, não uma coisa. Para o compositor, é um ideal.
Os sistemas de notação e de composição se desenvolvem juntos, por interação. Quanto mais a notação é complexa, mais a teoria se torna arbitrária e rígida. As regras impõem esquemas rigorosos e inteligíveis (racionais), a que o músico profissional se adapta necessariamente: a música é obrigada a se tornar tal que possa ser notada, o que não exclui a perigosa ambição de compor tudo o que se puder escrever. A decadência da música grega vem, em parte, daí, e os lingüistas poderiam evocar Saussure (Ferdinand Saussure, lingüista Suíço - 1857 - 1913), denunciando o perigo de a escrita contaminar a linguagem.
Podemos classificar os diferentes tipos de notação da seguinte maneira, segundo o sentido da informação que dela recebemos:
1 – Representação simbólica do som
- método analítico: notação tradicional. Pouca iniciativa do intérprete sobre os meios de produzir o fenômeno global desejado; busca de exatidão;
- método global: alguns símbolos de ornamentação da notação tradicional – trêmulos, batimentos, glissandi³, uma parte das novas notações (clusters, por exemplo). O intérprete pode escolher os meios de provocar a percepção global desejada: as estruturas finas são inventadas na ação musical;
- método esquemático: neumas e certos procedimentos utilizados em musica eletracústica.
2 – Indicação dos meios materiais de produzir o som (posição dos dedos nas cordas, por exemplo); tablaturas e algumas notações modernas (Stockhausen²). Os resultados são sensivelmente os mesmos da representação simbólica pelo método analítico, deixando ainda menos iniciativa ao intérprete.
3 – Sugestão de música possíveis: formas “abertas”, Text-komposition e, talvez, alguns sistemas orientais.
A grande fraqueza dos métodos de notação dos dois primeiros tipos, pela qual exercem uma influência impositiva sobre a composição, está em que eles introduzem a descontinuidade num fenômeno contínuo, em que quantificam, de certa forma, a música. Essa particularidade torna-os impróprios, qualquer que seja seu treinamento, para registrar a música de tradição oral, demasiado sutil e flutuante.
Em contrapartida, os aspectos positivos da notação não são desprezíveis. Com o progresso da impressão e da edição, ela permitiu a ampla difusão dos frutos do gênio musical ocidental, cuja fecundidade é notável. Mas, favorecendo a enorme difusão de nossa música pelo mundo, ela provocou o nivelamento das tradições regionais, fazendo os folclores da Europa perderem sua vitalidade e corrompendo até certas tradições da Ásia e da África. Essa conseqüência é inevitável, a menos que se invente uma notação universal que se adapte a todos os sistemas musicais, sem lhes impor limitações e que favoreça a circulação de todas as músicas do mundo, em todos os sentidos, o que parece utópico, a tal ponto nossa música e sua notação estão estreitamente unidas. A nova música da segunda metade do século XX preocupou-se freqüentemente com a universalidade. Mas não trouxe uma transformação fundamental à nossa concepção da escrita musical, que permanece especificamente ocidental; mesmo quando alguns, em nome de um sincretismo ilusório, crêem ver no grafismo das partituras um aspecto essencial da música, ou quando Stockhausen sonha com uma notação ideal em que “o sentido será instruído de maneira tão imediata, que o projeto excluirá qualquer dúvida quanto às modalidades possíveis de realização”. A única originalidade da nova música em relação à notação é sua recusa a se adaptar às particularidades da escrita tradicional, criando ao contrário o que lhe é necessária... pela primeira vez nos últimos cinco séculos.
NOTAS
1 - Neuma - Cada um dos sinais da antiga notação musical medieval, que não indicavam nem a altura exata dos sons nem a sua duração, mas apenas o movimento linear da melodia, i.e., onde a voz deveria elevar-se ou abaixar-se.
2 - Karlheinz Stockhausen (nascido na Alemanha a 22 de Agosto de 1928) é um compositor de música contemporânea. Foi colega de Pierre Boulez e ambos estudaram com o compositor e organista Olivier Messiaen.
Considerado um dos maiores compositores do final do século XX, é o responsável por trabalhos artísticos de grandiosidade indiscutível. As suas obras revolucionaram a percepção de ritmo, melodia e harmonia. Trabalhos como Stimmung e Mikrophonie marcaram época quando na sua estréia exigiam do público percepção musical aguçadíssima. De suas obras mais ambiciosas destaca-se o concerto para helicóptero, parte integrante de um work in progress de mais de dez anos: e a ópera Licht baseada em textos sânscritos e budistas que tem suas partes distribuídas nos dias da semana.
3 – Glissandi - Na harpa, no piano e noutros instrumentos de teclado, passagem rápida, ascendente ou descendente, das unhas ou das pontas dos dedos sobre uma série de notas consecutivas.
O próximo artigo desta série é CATEGORIAS SÓCIO-MUSICAIS
01 - Miragens de uma Definição
02 - Função Social e Percepção
“Um livro é uma árvore morta”
Saint-John Perse
Os testemunhos mais antigos de civilizações musicais refinadas remontam a mais de seis mil anos e temos razão de pensar que as origens da música são mais remotas. Pela iconografia, pelos vestígios de instrumentos, pelos relatos lendários ou pela tradição filosófica, sabemos quais eram suas funções e as condições de seu desenvolvimento desde a mais alta Antiguidade, principalmente na Ásia Menor, no Egito, na China e na Índia.
Contudo, essas ricas civilizações não nos deixaram o menor vestígio de uma obra musical notada, e, na abundância dos documentos, não se encontra qualquer representação de um músico lendo. Esses povos antigos não parecem ter-se preocupado com a transmissão exata de um patrimônio de objetos musicais, de idéias musicais, como tampouco se preocupam hoje os músicos tradicionais da Índia. Eles praticavam a música em circunstâncias determinadas, unicamente em benefício deles mesmos ou de sua família, sua casta, sua cidade, excepcionalmente para a satisfação de algum vencedor, atendo-se ao respeito às escalas e regras tradicionais.
Os mais antigos sistemas de notação que conhecemos são os dos gregos (desde cerca de 600 a.C.); pelo menos, foram os primeiros a nos serem transmitidos de forma inteligível. Os chineses teriam utilizado, desde o segundo milênio antes de nossa era, símbolos representando os sons de sua escala; mas não conhecemos qualquer documento musical notado anterior ao século XVI de nossa era. Quanto aos sistemas da Índia, que sabemos existirem desde a época védica, tinham provavelmente, a princípio, um caráter esotérico, ligado à interpretação dos hinos; só nos são acessíveis sob a forma, relativamente recente, que conservaram em nossos dias, como funções principalmente teóricas e pedagógicas.
É impossível garantir que uma notação da música tenha funcionado ou não em épocas muito remotas, na Mesopotâmia ou no Egito, por exemplo, apesar dos resultados encorajadores de pesquisas recentes. De qualquer modo, nenhum sistema pode ter sido de uso corrente na Antiguidade. Músicos lendo só aparecem na iconografia no início do século XV de nossa era, quando, na civilização ocidental, a notação se tornou prática e indispensável. Não conhecemos tampouco textos musicais, fora as referências do Sāma Veda (c. 1200 a.C.) e de uma dezena de documentos gregos, a maioria bastante tardia. Se o uso da notação tivesse sido mais difundido, é certo que a civilização helênica, cuja poesia lírica, a tragédia, a filosofia são conhecidas graças a abundantes fontes literárias, nos teria deixado inúmeros testemunhos de seu patrimônio musical. Claro, vários de nossos raros documentos representam obras musicais autônomas, no sentido em que compreendemos hoje. Mas são casos isolados, pouco significativos. Os símbolos gráficos aparentemente teriam como objetivo principal, então, guiar a recitação lírica em caso de necessidade e, sobretudo, fornecer um instrumento de trabalho aos teóricos e pedagogos.
Quanto à música cristã primitiva, nem a notação alfabética latina (incoerente adaptação da notação grega), nem a notação bizantina, ambas demasiado ambíguas e complicadas, podiam contribuir para seu desenvolvimento e sua difusão. Praticamente, a música cristã dispensou anotação até o aparecimento dos primeiros neumas¹, por volta do século VIII (pp. 205 s.); a memória dos cantores, seu conhecimento das regras e alguns gestos convencionais bastavam para garantir a coesão dos coros.
Entretanto, os primeiros neumas não eram mais que uma estenografia imprecisa, hoje quase indecifráveis, destinada apenas a ajudar a memória, indicando o movimento de fórmulas melódicas já conhecidas. Até o século XII, a interpretação dos textos musicais permanece bastante incerta, freqüentemente arriscada. O ritmo só será notado com clareza no século XV e será preciso aguardar o século XVIII para que a dinâmica e a instrumentação sejam determinadas com exatidão. É à medida que a polifonia se torna mais complexa e refinada que, por necessidade, a música ocidental se dota lentamente de um sistema de notação cada vez mais preciso.
Assim, a preocupação de conservar e transmitir com exatidão a idéia musical à posteridade parece extremamente recente e em nenhuma outra parte foi tão impositiva quanto em nossa civilização. Desde há milênios, a música era uma arte de tradição oral, como a pantomima. Regras fundamentais, profundamente assimiladas, constituíam o essencial da cultura musical transmissível. Eram elas que os músicos respeitavam, e não o que chamamos de “obras”. A música vivia em perpétuo devir, fosse no improviso, fosse na interpretação renovada de fórmulas tradicionais. Ela era um gesto que se esvaía para suscitar outro e não podia petrificar-se num sistema ilusório de correspondências gráficas. Mesmo quando uma obra literária supunha uma interpretação musical determinada de antemão (lírica e tragédia gregas, por exemplo), era muito mais a um modo de recitação do que a uma composição musical justaposta ao texto que os antigos se referiam.
A Notação Ocidental
Segundo J. Handschin, a notação é o sintoma de um debilitamento de sentido musical. A memória musical, notavelmente fiel onde se impõe a tradição oral, se enfraquece e se degrada sob a influência da notação. Criando uma categoria de músicos executantes, distintos dos criadores, ela acentua uma especialização prejudicial à cultura musical coletiva. Privilegiando a partitura, a ponto de fazer dela o objeto por excelência da música, ela precipita o declínio dessa cultura. É interessante observar que, a partir do século XVI, quando a notação se tornou soberana e a partitura precisa e tirânica, os anjos musicistas desaparecem da iconografia e são substituídos por profissionais lendo. A inspiração angélica foi substituída pela engenhosidade dos “compositores”...
Com efeito, a mutação provocada pela escrita na música ocidental foi profundíssima. Incapaz de estabelecer a posteriori as sutis flutuações agógicas do ato musical (o que, inicialmente, tinha por vocação fazer), ela inaugura a maneira de estabelecer a priori a maneira como os sons devem ser produzidos. Ela se torna um cânon fixo, cuja observação favorece o culto desmedido da obra. A importância que damos a esse conceito, enquanto representação de pretensos objetos musicais, é excessiva. As “obras” escritas, cujo estudo é a preocupação maior dos historiadores e musicólogos, não são objetos acabados, mas por fazer. A esse respeito, a partitura é comparável à planta do arquiteto, à decupagem do filme ou à receita culinária. O elemento permanente, reconhecível, transcendente às interpretações possíveis não é a obra, mas seu projeto. A representação que um músico faz para si ao ler a partitura sem tocá-la refere-se necessariamente a uma interpretação imaginária; a lembrança que dela conserva é a de uma música ouvida e não a de um conjunto de símbolos que representam uma música a ser tocada. Só existindo se aparecer na interpretação, a obra é uma “aparência”, não uma coisa. Para o compositor, é um ideal.
Os sistemas de notação e de composição se desenvolvem juntos, por interação. Quanto mais a notação é complexa, mais a teoria se torna arbitrária e rígida. As regras impõem esquemas rigorosos e inteligíveis (racionais), a que o músico profissional se adapta necessariamente: a música é obrigada a se tornar tal que possa ser notada, o que não exclui a perigosa ambição de compor tudo o que se puder escrever. A decadência da música grega vem, em parte, daí, e os lingüistas poderiam evocar Saussure (Ferdinand Saussure, lingüista Suíço - 1857 - 1913), denunciando o perigo de a escrita contaminar a linguagem.
Podemos classificar os diferentes tipos de notação da seguinte maneira, segundo o sentido da informação que dela recebemos:
1 – Representação simbólica do som
- método analítico: notação tradicional. Pouca iniciativa do intérprete sobre os meios de produzir o fenômeno global desejado; busca de exatidão;
- método global: alguns símbolos de ornamentação da notação tradicional – trêmulos, batimentos, glissandi³, uma parte das novas notações (clusters, por exemplo). O intérprete pode escolher os meios de provocar a percepção global desejada: as estruturas finas são inventadas na ação musical;
- método esquemático: neumas e certos procedimentos utilizados em musica eletracústica.
2 – Indicação dos meios materiais de produzir o som (posição dos dedos nas cordas, por exemplo); tablaturas e algumas notações modernas (Stockhausen²). Os resultados são sensivelmente os mesmos da representação simbólica pelo método analítico, deixando ainda menos iniciativa ao intérprete.
3 – Sugestão de música possíveis: formas “abertas”, Text-komposition e, talvez, alguns sistemas orientais.
A grande fraqueza dos métodos de notação dos dois primeiros tipos, pela qual exercem uma influência impositiva sobre a composição, está em que eles introduzem a descontinuidade num fenômeno contínuo, em que quantificam, de certa forma, a música. Essa particularidade torna-os impróprios, qualquer que seja seu treinamento, para registrar a música de tradição oral, demasiado sutil e flutuante.
Em contrapartida, os aspectos positivos da notação não são desprezíveis. Com o progresso da impressão e da edição, ela permitiu a ampla difusão dos frutos do gênio musical ocidental, cuja fecundidade é notável. Mas, favorecendo a enorme difusão de nossa música pelo mundo, ela provocou o nivelamento das tradições regionais, fazendo os folclores da Europa perderem sua vitalidade e corrompendo até certas tradições da Ásia e da África. Essa conseqüência é inevitável, a menos que se invente uma notação universal que se adapte a todos os sistemas musicais, sem lhes impor limitações e que favoreça a circulação de todas as músicas do mundo, em todos os sentidos, o que parece utópico, a tal ponto nossa música e sua notação estão estreitamente unidas. A nova música da segunda metade do século XX preocupou-se freqüentemente com a universalidade. Mas não trouxe uma transformação fundamental à nossa concepção da escrita musical, que permanece especificamente ocidental; mesmo quando alguns, em nome de um sincretismo ilusório, crêem ver no grafismo das partituras um aspecto essencial da música, ou quando Stockhausen sonha com uma notação ideal em que “o sentido será instruído de maneira tão imediata, que o projeto excluirá qualquer dúvida quanto às modalidades possíveis de realização”. A única originalidade da nova música em relação à notação é sua recusa a se adaptar às particularidades da escrita tradicional, criando ao contrário o que lhe é necessária... pela primeira vez nos últimos cinco séculos.
NOTAS
1 - Neuma - Cada um dos sinais da antiga notação musical medieval, que não indicavam nem a altura exata dos sons nem a sua duração, mas apenas o movimento linear da melodia, i.e., onde a voz deveria elevar-se ou abaixar-se.
2 - Karlheinz Stockhausen (nascido na Alemanha a 22 de Agosto de 1928) é um compositor de música contemporânea. Foi colega de Pierre Boulez e ambos estudaram com o compositor e organista Olivier Messiaen.
Considerado um dos maiores compositores do final do século XX, é o responsável por trabalhos artísticos de grandiosidade indiscutível. As suas obras revolucionaram a percepção de ritmo, melodia e harmonia. Trabalhos como Stimmung e Mikrophonie marcaram época quando na sua estréia exigiam do público percepção musical aguçadíssima. De suas obras mais ambiciosas destaca-se o concerto para helicóptero, parte integrante de um work in progress de mais de dez anos: e a ópera Licht baseada em textos sânscritos e budistas que tem suas partes distribuídas nos dias da semana.
3 – Glissandi - Na harpa, no piano e noutros instrumentos de teclado, passagem rápida, ascendente ou descendente, das unhas ou das pontas dos dedos sobre uma série de notas consecutivas.
O próximo artigo desta série é CATEGORIAS SÓCIO-MUSICAIS
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